Número, referente a pensões pagas pelo estado, reflete a
triste rotina de famílias de policiais mortos
POR ELENILCE BOTTARI
Meninos que perderam seus pais policiais militares visitam o
Educandário Nossa Senhora das Dores, em Olaria, todos os dias da semana - Ana
Branco / Ana Branco
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RIO — A estudante Myllena Paes Leme não esquece a noite fria
e chuvosa de 6 de março de 2014, quando viu compartilhado em sua rede social a
seguinte mensagem: “Mais um pai de família se foi, você fez um ótimo trabalho.
Eterno Soldado Rodrigo Paes Leme”. A notícia, que rapidamente havia se
espalhado pela internet, ainda informava que, em seus últimos momentos de vida,
depois de ser atingido por um tiro durante patrulhamento na Favela Nova
Brasília, no Complexo do Alemão, o policial militar — pai de Myllena — pedira a
um colega: “parceiro, não vou aguentar, avisa aos meus filhos que eu os amo
muito”.
Vivendo no Nordeste, a mais de 2.400 quilômetros de
distância, a jovem se programava para encontrar Rodrigo, a quem visitara pela
última vez no ano anterior. Não teve, portanto, oportunidade de abraçá-lo
novamente, nem mesmo de dar um beijo de despedida para aplacar sua dor. Assim
como outros sete filhos do policial. A perda violenta com a qual Myllena, hoje
com 17 anos, terá que conviver pelo resto da vida, também ronda as lembranças
de pelo menos outros 434 órfãos de pais policiais, que morreram nos últimos
seis anos em confrontos, emboscadas e assaltos, após serem reconhecidos como
PMs. Um sofrimento expresso nos números de pensões pagas pelo estado. Além dos
filhos, 328 mulheres viúvas e 37 mães que perderam seus filhos nesse período
são beneficiárias. Para as famílias, a morte violenta dos militares, cujos
erros são frequentemente denunciados, é muitas vezes tratada de forma banal,
como parte do jogo.
SESSENTA PMS ASSASSINADOS ESTE ANO
Ao falar sobre os assassinatos dos soldados Bruno Rodrigues
Pereira e Neandro Santos de Oliveira, que tinham morrido dias antes, o
secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, cobrou, durante uma
entrevista, em tom de protesto, mais indignação da população. Com a morte dos
dois, o número de policiais assassinados no estado este ano chegou a 60. Para
se ter uma ideia, em Nova York, de novembro de 2014 até agora, foram
registrados quatro assassinatos de policiais. O corpo de Bruno foi encontrado
no dia 28 de setembro na comunidade Dom Bosco, em Nova Iguaçu. Segundo as
investigações, ele foi sequestrado e teve o corpo arrastado por um cavalo. Já
Neandro cruzou com um bonde de traficantes na noite do dia 12 de outubro, foi
baleado e levado para o alto do Complexo do Chapadão, em Costa Barros, onde seu
corpo foi queimado.
Durante os nove dias em que o soldado constou como
desaparecido, a mulher dele, a comerciária Cristina Custódio, apegou-se à
esperança de que Neandro ainda estaria vivo para acompanhar o nascimento do
filho. Cristina está grávida de seis meses:
— Eu não pensava em ter filho, porque achava que seria muito
difícil criar uma criança sozinha na realidade de hoje. Mas, ao conhecer
Neandro, tudo mudou. Minha certeza de que viveríamos para sempre juntos foi
tanta que casamos quase imediatamente, depois de começarmos a namorar. O filho
veio como uma bênção. Por isso, nos nove dias em que ele ficou desaparecido,
não acreditei, em nenhum momento, que pudesse estar morto. Para ser sincera,
ainda não acredito —contou a viúva, cujo o filho ainda não faz parte da
estatística do estado.
Um mês após a morte de Neandro, Cristina ainda tem
dificuldade para dormir e não se conforma com a “normalidade” com que as
pessoas tratam a questão:
— Pelo menos 20 pessoas participaram da morte do Neandro.
Ele era estudioso, formado em teologia e cursava administração. Era
trabalhador, honesto e morreu ao ir trabalhar no BRT pelo Proeis (Programa
Estadual de Integração na Segurança, que viabiliza segundo emprego para
policiais). Por que as pessoas não protestam contra isso? por que acham normal?
Para os parentes de alguns policiais, sempre existe a
preocupação em torno da volta deles para casa, após cada dia de trabalho. Esse
era também o temor da família do soldado Alex Amâncio Ferreira, lotado na UPP
do Andaraí. Pelo menos até o dia 6 de julho, quando ele morreu baleado na
cabeça e no peito, durante um último patrulhamento na favela, onde estava
lotado há cerca de seis meses:
— Diariamente, a nossa filha perguntava “papai, você vai
voltar?”, e ele respondia “sempre, filha; sempre”. Embora digam que os
policiais saem sem saber se voltam para casa, no fundo nunca acreditamos no
pior. Eu mesma não consegui aceitar quando me disseram. Para mim, ele tinha
sido atingido, e o estado de saúde poderia até ser grave. Mas não conseguia
aceitar que ele havia falecido — comenta a professora Vanessa Santos Dantas,
viúva de Alex.
Com 4 anos incompletos, Rafaella, a filha do casal, já sabe
que o pai está no céu. Ela pediu à mãe para aprender a voar e, assim, poder
visitá-lo. Durante uma viagem de avião que fez com a família, a menina ficou
chateada por não ter conseguido ver o pai nas nuvens.
— Ela ficou aborrecida. Às vezes dorme abraçada à foto dele,
que era muito cuidadoso com ela, muito carinhoso. Ligava todos os dias, durante
o serviço, para saber se ela já tinha almoçado, se tinha voltado da escolinha.
E, naquele dia, não foi diferente — lembra Vanessa.
Ela e o marido se conheceram no início da adolescência, e o
casamento só ocorreu após ele ter garantido que havia desistido do sonho de ser
PM. Segundo Vanessa, Alex chegou a arranjar emprego em um banco. Mas, durante
uma viagem de férias ao Nordeste, para comemorar um ano de casamento, ele deu a
notícia de que havia passado no concurso.
— Eu fiquei furiosa. Briguei muito com ele. Meu pai chegou a
dizer que, se isso tivesse acontecido antes do casamento, não me deixaria
casar. Mas era o sonho do Alex, e acabei aceitando.
Policiais mantêm educandário
Entre os benefícios que policiais recebem, um deles é
mantido pela própria tropa: o Educandário Nossa Senhora das Dores, em Olaria.
Funcionando como creche, a irmandade hoje cuida de cerca de 60 filhos de PMs e
é o xodó da corporação.
— Aqui cuidamos durante o dia dos filhos dos policiais em
situação mais carente, que não têm com quem deixá-los durante o trabalho, e
também dos órfãos. A instituição é mantida inteiramente pela colaboração
voluntária dos policiais, que descontam em folha. Nós alimentamos, damos banho
e realizamos brincadeiras, aulas de esportes como jiu-jítsu. Também aprendem a
mexer em computador. Mantemos assistência psicológica e social. É um trabalho
gratificante — afirma o major João Costa Filho, há 12 anos trabalhando como
administrador da instituição.
Segundo ele, o educandário foi fundado em 1958 como
orfanato, e assim funcionou até 2009, mudando depois para atender ao Estatuto
da Criança e do Adolescente:
— Antes, muitos dormiam aqui. Mas agora passam o dia. Temos
um serviço de transporte para levá-los e buscá-los na escola. E aqui ainda
recebem reforço escolar após as aulas.
Carta de Myllena Paes Leme:
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